Em Vigiar e Punir, Michel Foucault analisa a evolução das práticas punitivas, com um foco claro na transição de uma sociedade de punição espetacular para uma sociedade de controle e vigilância mais sutis. Foucault descreve como o poder se manifesta não mais apenas em formas diretas e visíveis, como a tortura pública, mas através de mecanismos discretos que regulam a vida cotidiana e moldam as práticas sociais, políticas e econômicas. O Estado, conforme Foucault, se utiliza de métodos complexos para garantir a conformidade das pessoas, disfarçando o exercício de poder por meio da "normalização" e da "disciplinarização", ou seja, uma imposição de regras que se apresentam como neutras, mas que têm como função manter a ordem e o controle social.
No contexto da aplicação dos direitos humanos, a obra de Foucault oferece uma leitura crítica fundamental, pois ele problematiza a ideia de que os direitos humanos seriam instrumentos inquestionáveis de liberdade e justiça. Em vez disso, Foucault sugere que as estruturas de poder, incluindo o Estado e as instituições globais, frequentemente utilizam os direitos humanos como ferramentas de controle. A ideia de "poder disciplinar", conforme ele descreve, implica que o Estado não apenas regula os corpos, mas também controla as formas de resistência, manipulando o discurso sobre direitos e responsabilidades.
Em suas palavras: “O poder não é exercido apenas como uma repressão direta, mas também como uma produção de saberes, de normatividade, e de formas de conduta”. Este conceito reflete precisamente como os direitos humanos, em muitos contextos, se tornam formas de controle normativo, de modo que a sua aplicação depende do contexto político e econômico. Ou seja, os direitos humanos são frequentemente "vendidos" ou oferecidos de forma condicional, dependendo das circunstâncias, sendo subjugados aos interesses do Estado ou de corporações que buscam preservar sua posição de poder.
Foucault também aponta para a maneira como o poder econômico influencia a aplicação dos direitos humanos. O capitalismo, com sua lógica de mercado, subordina até mesmo os direitos fundamentais às dinâmicas de lucro e poder. Quando ele afirma que “a economia do poder não é mais uma economia de repressão, mas uma economia de regulação”, ele sugere que a manutenção do poder se dá não mais pela força bruta, mas por meio da regulação do comportamento e da subjetividade das pessoas. No campo dos direitos humanos, isso se traduz na seletividade da aplicação desses direitos, que são muitas vezes ignorados ou distorcidos quando não coincidem com os interesses das elites econômicas ou políticas.
Por exemplo, em situações de conflito armado ou em regimes autoritários, os direitos humanos são frequentemente manipulados para justificar intervenções militares, quando, na realidade, tais intervenções estão mais ligadas a interesses geopolíticos ou econômicos. As potências ocidentais, ao intervir em países em desenvolvimento, frequentemente invocam a proteção dos direitos humanos como uma justificativa moral. Contudo, muitas dessas intervenções têm, na verdade, o objetivo de garantir acesso a recursos naturais ou de manter alianças políticas estratégicas, o que evidencia o abismo entre a retórica dos direitos humanos e sua aplicação prática.
Foucault também enfatiza que o poder não se limita a uma oposição entre dominantes e dominados, mas se expressa através da exclusão e da marginalização. Para ele, a ideia de normalidade imposta pelo poder contribui para uma hierarquização das populações, estabelecendo um padrão de “norma” e “desvio”. Nesse sentido, a aplicação seletiva dos direitos humanos pode ser vista como um meio de manter os grupos marginalizados fora do acesso a direitos plenos, enquanto os poderosos desfrutam da proteção plena desses direitos.
A frase de Foucault, "A normalização funciona como uma maneira de tornar o desvio ainda mais inaceitável e, portanto, reforçar a hierarquia", reflete diretamente como a aplicação dos direitos humanos pode ser subvertida para reforçar as desigualdades sociais. Aqueles que não se alinham às expectativas do Estado ou do mercado — por exemplo, os imigrantes, os refugiados ou as populações em conflito — frequentemente se veem privados de seus direitos fundamentais, simplesmente porque não se encaixam na norma estabelecida por poderes econômicos ou políticos dominantes.
Exemplos práticos de como os direitos humanos são “comprados” e não oferecidos gratuitamente podem ser observados em várias situações contemporâneas. No caso das corporações transnacionais, por exemplo, a exploração de recursos naturais em países em desenvolvimento é frequentemente justificada por uma retórica de desenvolvimento e direitos humanos, mas a realidade é que as populações locais são muitas vezes despojadas de seus direitos fundamentais em nome do lucro econômico. A resposta estatal a tais violações, muitas vezes, é mínima ou até inexistente, quando o interesse econômico do país envolvido está em jogo.
No Brasil, um exemplo notável foi a forma como os direitos humanos foram ignorados em contextos de repressão política e social durante a ditadura militar. A proteção dos direitos humanos, como a liberdade de expressão e o direito de associação, foi subjugada à necessidade de manter a ordem pública, algo que foi amplamente legitimado pelo poder econômico e político da época.
Foucault nos oferece as ferramentas teóricas para entender que a aplicação dos direitos humanos está longe de ser um processo puramente ético e imparcial. Em vez disso, a aplicação desses direitos está profundamente imersa nas relações de poder e nas necessidades do mercado e do Estado. A tese de que os direitos humanos são comprados e não oferecidos gratuitamente é, portanto, fundamentada na ideia de que os direitos humanos, em sua aplicação prática, são subordinados às lógicas de controle e de poder econômico, que ditam quem pode ou não usufruir desses direitos.
Ao refletir sobre a relação entre o capitalismo, os interesses estatais e a aplicação dos direitos humanos, Foucault nos oferece uma crítica contundente da hipocrisia que muitas vezes permeia as intervenções em nome dos direitos humanos. A sua análise do poder, com sua capacidade de se infiltrar nas instituições e moldar os comportamentos sociais, ajuda a esclarecer como a aplicação dos direitos humanos pode ser seletiva, condicionada e manipulada, ao invés de ser universal e incondicional. A verdadeira proteção dos direitos humanos requer, portanto, uma crítica contínua aos mecanismos de poder que distorcem e subvertem sua aplicação.